quarta-feira, 3 de dezembro de 2008


o que se ouve entre a opy e a escola - corpos e vozes da ritualidade guarani
2005

índice

capítulo um
capítulo três





CAPÍTULO DOIS: YVÁRA RENDUPA
o ouvir da aprendizagem Guarani

Kiriri, kiriri ...

Grilos e pássaros anunciam a noite que desce sobre a floresta urbana que cerca o Pico do Jaraguá. A opy recebe a noite de luar silenciosa. A cidade parece estar longe. O som sinuoso da ravé funde-se à fumaça densa do tabaco que emana do petÿguá do che ramói. O petÿn calmamente envolve o ambá, os instrumentos e os rezadores. A nuvem espessa circunda-nos. Impregna-se aos corpos que se movem defumando o altar. Pitada, se derrama sobre o ambá, é ministrada no interior dos instrumentos. No fogo aceso ao canto da opy, o pedaço de brasa é usado para acender o cachimbo. Em compasso ainda lento os takuapu tiram som da terra. Nos gestos contidos da dança seus pés quase não tocam o chão. O fio sonoro tirado da fricção do ravé mbypua percorre cada detalhe da linha melódica. Os cantos, contornando a música, vão e vêm, em ondas. As vozes masculinas puxam os cantos, seguidas das femininas que levam às alturas com seus arabescos sonoros. Lá fora, a Lua cheia envolve numa aura a fumaça que paira sobre o sapé da opy. Lá dentro, as vozes ecoam em uníssono.

O mborahéi mbyá, também chamado oñendu, escutar, inicia-se diariamente à hora do crepúsculo vespertino. O ritual, simples à primeira vista, comporta um elaborado conjunto de processos de aprendizagem organizados simbolicamente. Nosso percurso destina-se a ele.
Encaminhando a ritualidade como prática central da socialidade ameríndia, Aracy Lopes da Silva, condensa num belo ensaio seus estudos sobre a corporalidade no ambiente de aprendizagem A’uwe - Xavante. Considera as crianças como pequenos xamãs. “...proponho aqui que a corporalidade seja entendida também como um dos mecanismos centrais dos processos de aprendizagem e transmissão de conhecimentos, habilidades, técnicas e concepções próprias à educação das crianças índias...” A ritualidade constitui-se no conjunto de recursos que encaminham a aprendizagem nesse universo de conhecimento. Ainda que cada etnia encontre uma forma específica de elaborá-la, a corporalidade é a matriz da ritualidade. Esse profundo conhecimento do corpo cultivado por essas tradições geração após geração dispõe-se aqui.
“... Movimento, ação, sentidos, plástica e emoção combinam-se como ‘técnicas’ ao mesmo tempo cognitivas e formadoras, em contextos sociais que vão desde as atividades corriqueiras da vida cotidiana até os momentos festivos dos grandes rituais estruturados simbolicamente. Essa articulação é construída menos por afirmações verbais que de recursos musicais, dramáticos, gestuais, artísticos nos quais a ornamentação corporal freqüentemente traduz informações relevantes para a situação da criança no mundo e na vida social.” (Lopes da Silva, 2001:40)

Os traços distintivos entre a transmissão de saberes indígena, de base oral e iniciática, e a educação desenvolvida nos moldes ocidentais, produto da escrita e da escola, fundamentam-se em diferentes concepções e tratamentos dados ao corpo.
A corporalidade, constitutiva dos processos de aprendizagem elaborados no âmbito das sociedades indígenas, excede a dimensão das relações sociais e, descentrando a perspectiva etnocêntrica, afirma seu fundamento cosmológico. Adentra-se o mundo dos pequenos xamãs.
O corpo é o centro dos processos de aprendizagem herdados e reelaborados pelos Guarani. Há uma aprendizagem envolvida no rito cerimonial que vai além, ou melhor, que tem um princípio diferenciado, daquele veiculado em sala de aula, que privilegia o intelecto e a escrita e resulta numa “domesticação corporal”.
O aprimoramento dos sentidos potencializa as propriedades corporais pesquisadas pelos antigos. Herdam-se conhecimentos sobre os desdobramentos rituais do corpo e sua linguagem, concepções que constituem a cerimônia em sua organização simbólica. Encontram-se conhecimentos surpreendentes, imperceptíveis à primeira vista, bastante comuns à sensibilidade dos praticantes que as cultivam por anos a fio e gerações a fora. Sonhadores, tomadores de Ka’á (erva mati, Ilex paraguaiensis) e fumadores de Petÿn (tabaco, Nicotiana tabacum), os Guarani transformam-se em canto e dança para refinarem sua percepção por meio dessas técnicas aperfeiçoadas ao longo do tempo.
O mborahei ou poraí, cantar-dançar Guarani, veicula um profundo sentido do corpo em experiência ritual, cuja prática o aperfeiçoa (Montardo, 2002). A dança é a mais antiga técnica de metamorfose do corpo. Ao longo da investigação, soube-se que muitos dos relatos míticos Guarani são transposições, em forma narrativa, de técnicas e símbolos dispostos ao longo do ritual . Imerso e educado em contextos rituais elaborados simbolicamente, o corpo constitui a porta de entrada para o Cosmos.

conhecer, verbo intransitivo

“A experiência religiosa guarani é constituída pelas formas da relação com o divino, pelas formas do canto e da dança, pelas formas da palavra profética, mais do que pelo conteúdo de suas crenças.” (Meliá, 1989:330)

Recolhendo o que a intuição da epígrafe ampara, deduz-se que se trata de escavar as bases de um pensamento não-logocêntrico.
Problematizando as especificidades da linguagem na cultura Guarani (as belas palavras, em sua maioria elaboradas para estudo na opy) o silêncio, bem como as pausas entre os turnos lingüísticos, passa a ter um outro sentido. O trabalho silencioso na manufatura de adornos, confecção de trançados, ou no esculpir da madeira constituem momentos de aprendizagem fundamentais a todo guarani, como cantar ou dançar .
O que não anula, no entanto, a importância da troca de experiências e da palavra dos mais velhos. Pelo contrário, a palavra não pode ser simplesmente ensinada, pois deve encontrar ressonância diferente em cada ouvido e despertá-lo para sua experiência criativa singular .
A palavra do che ramói encerra um silêncio que se propaga numa gama de possíveis. A palavra enraizada tem dimensões oraculares.
Compreende-se então, o alcance da aprendizagem Guarani. Não se trata, propriamente, de uma educação do sagrado, menos ainda, uma educação religiosa, e sim, da consagração que constitui toda aprendizagem.
Os aty guaçu são considerados momentos fundamentais no aprendizado Guarani. No empenho dedicado pelo cacique Getúlio à realização dos aty guaçu, grande encontro de nhande ru e seus grupos de aldeias diversas, constatou-se a sua importância como momento privilegiado de produção e troca de conhecimentos, inclusive os aqui veiculados. Momento em que se encaminham decisões políticas nos debates diurnos e vivências místicas nas cerimônias noturnas.
Na experiência de participação em alguns desses encontros pude integrar essa rede que se constitui em meio aos acontecimentos. Durante o encontro de Nhande Ru de 2002, na aldeia Jaguapirú da Reserva Indígena de Dourados, tive a oportunidade de tomar contato com a Nhande Sy Odúlia. Dona Odúlia, pouco antes de partir, afirmava que todos estavam ali para se fortalecerem e que voltava para sua tekohá como o pássaro que leva o alimento no bico e o distribui aos passarinhos.
Durante o Nhemboaty Ñande Reko Ete’i Pyguá - I Encontro de Educação Tradicional Guarani, realizado em dezembro de 2002 na tekoá Tenondé Porã, em São Paulo, enquanto os participantes faziam seus discursos de encerramento, o nhande ru Jijiokó, da aldeia Rio Silveira, pontuou uma questão de grande relevância tanto para a compreensão do encontro, como do o que eles estão fazendo. Segundo ele, os Guarani podem se fortalecer fazendo uso de uma prática desenvolvida há muito por seus antigos líderes espirituais. Essa prática consiste na conexão dos celebrantes dos rituais entre uma e outra aldeia. Durante a realização do rito noturno cotidiano, o celebrante se remete à aldeia de um parente ou um amigo, que se encontra igualmente na opy. Dessa forma, o rito pode compor uma rede de conexões, uma teia formada por fios, através dos quais, todos podem enviar e receber informações e força para si e para o grupo.

os caminhos: o caminho

Os yvyrá’ijá, donos do pequeno bastão, são os mensageiros. São assim chamados, pois empunham bastões. Eles têm a função de prestar assistência ao pajé. Essa expressão estende-se, ainda, ao sentido de guerreiro, por sua vigilância e ágil destreza.
Montardo (2002:33) encaminha uma interessante “desubjetivação” ou “verbalização” que dinamiza a expressão. Define-se como qualidade que se está treinando no ritual. Esse caráter guerreiro do yvyra’ijá remete igualmente ao que busca neste trabalho: apropriar-se desse pensamento como um dispositivo de compreensão. Apropriar-se do pensamento indígena  pensando pensamento a partir da tríade conceptos-perceptos-afectos  enquanto dispositivo de compreensão, tem por propósito crucial aqui, a decisão por não neutralizar esse pensamento, não pretender explicá-lo por certos modos de transmissão social do conhecimento ou como ilustração de universais cognitivos da espécie humana. Entende-se por dispositivo de compreensão, o que Viveiros de Castro define em seu programa:
“Agora não se trataria mais ou apenas da descrição antropológica do kula (enquanto forma melanésia de socialidade), mas do kula enquanto descrição melanésia (da ‘socialidade’ como forma antropológica); ou ainda, seria preciso continuar a compreender a ‘teologia australiana’, mas agora como constituindo ela própria um dispositivo de compreensão; do mesmo modo, os complexos sistemas de aliança ou de posse da terra deveriam ser vistos como imaginações sociológicas indígenas.” (2002)
Essa proposta coordena o presente trabalho. Pode-se dizer que lhe aponta um caminho, justifica-lhe o método. Decidir-se por não explicar esse pensamento, estende-se a não subjetivá-lo, objetivando-o. A partir dessa decisão, conduz-se à figura de Outrem (estrutura de outrem), noção também crucial aqui, visto que instaura linhas de fuga à subjetividade (unidade, essência, constância e universalidade).
O que possibilitará essa operação de abster-se de verificar, será assim, a via aberta pela noção de figura de Outrem. Viveiros de Castro define essa expressão, como noção central na operação com a subjetividade, identidades e alteridades, a partir do programa instaurado na obra de Deleuze.
Ao indicar linhas de fuga para a subjetivação, processos de composição de (inter)subjetividades, permite colocar a questão da consciência, noção crucial tanto para a discussão da intersubjutividade, com seus fluxos organizadores, como para se colocar a questão da figura de Outrem como tendência aos fluxos de dissolução de subjetividades, norteados pelas hecceidades (movimento e repouso, afetar e ser afetado). Essa dinâmica encontra-se na tríade conceitos, afectos e perceptos.
Dessa forma, a verificação do Outro, sua explicação, segue no rumo desses fluxos de instauração de subjetividades (Jardim, 2005), enquanto que a via trágica de recusar-se a atualizar os possíveis expressos pelo pensamento indígena, conduz à apropriação desses virtuais em nosso processo de (des)subjetivação.
Essa figura aponta para uma definição de Outrem não como sujeito, caso da intersubjetividade esboçado aqui, e sim como expressão de um mundo possível. Disso resulta a recusa de atualizar os possíveis expressos pelo pensamento indígena num processo de verificação que o estigmatiza enquanto crença.
“Manter os valores de outrem implícitos não significa celebrar algum mistério numinoso que eles encerrem; significa a recusa de atualizar os possíveis expressos pelo pensamento indígena, a deliberação de guardá-los indefinidamente como possíveis  nem desrealizando-os como fantasias dos outros, nem fantasiando-os como atuais para nós.(...) Se há algo que cabe de direito à antropologia, não é certamente a tarefa de explicar o mundo de outrem, mas a de multiplicar nosso mundo, ‘povoando-o de todos esses exprimidos que não existem fora de suas expressões.’” (2002)
Essa decisão por não neutralizar esse pensamento é a lição da antropologia que aqui pode ser aproveitada pelos estudos da aprendizagem.

d’ouvir

Julho de 2002. Área Indígena Jaguapirú, Dourados, Mato Grosso do Sul. Encontro de Nhande Ru Guarani Kaiowá e Nhandeva. Os nhande rus e seus grupos vão chegando de longe, um a um. Cada grupo que chega é recepcionado com cantos e danças desde o pátio de entrada até Oga-py-sy. Segundo dia do encontro. Os preparativos para o nhemongaraí, cerimônia de nomeação, estão quase prontos. Todos os grupos estão reunidos na casa de cerimônia. Amambai, Limão Verde, Panambi, Porto Lindo, Jacaré, Jaguapiré... Mais de cem pessoas preparam-se para o início. Mães com pequenas crianças e demais nomeandos; eu mesmo, ainda sem saber. O primeiro mbaraká, na mão do nhande ru De lo Santo, que conduzirá a cerimônia, põem-se a girar, emitindo um som contínuo. Assim, um a um, cada mbaraká vai unindo-se ao coro. Em pouco tempo a infinidade de mbarakás afina-se em um uníssono. Lentamente surge o sopro do mimby, pequena flauta, que paira sobre o mar de mbarakás. A oga-py-sy assemelha-se a um grande mbaraká. Por longos minutos aquele som envolve-nos, arrebata-nos e arrasta-nos. Somos dragados mbaraká adentro. Em meio à massa sonora dos mbarakás, já não se sabe há quanto tempo teve início. Neste entre-momento, do fundo da caótica massa sonora, emerge um pulsar quase imperceptível. O mesmo mbaraká do início vem trazendo novamente um a um, todos os mbarakás, que vão deixando o som disforme e entrando em um mesmo compasso. Os takuapus extraem som da terra. O redemoinho centrífugo inverte-se em espiral centrípeta. A transformação assemelha-se a uma grande onda que vem se levantando e arrasta a todos. Gradualmente o canto vai entrando e a música se constituindo. O coro se compõe de vozes infantis, vozes femininas e masculinas. Na audição parecem ecoar mais vozes que as presentes. Iniciava-se a cerimônia.

Na sociedade Guarani, os nhande ru e nhande sy, nosso pai e nossa mãe, exercem a função de conselheiros, educadores e médicos. No ato do ñemongaraí, segundo Clastres o verdadeiro nascimento do Guarani, tornam-se preceptores de nosso ñe’ë. O exercício dessa maiêutica lhes concede esse título. O che ramói, meu avô, é um reconhecimento a quem atingiu maturidade diferenciada nesse caminho.
A importância do nome para o Guarani pode ser referida numa passagem com minha madrinha de batismo Alda de Oliveira. Como sempre chegava caminhando e de mochila à área, um dia, quando me falava dos presságios que anunciavam minha chegada, disse, com seu jeito particular, que ao me ver, afirmou: “Ah !! Já vem chegando o peregrino mesmo”.
Os resultados desta pesquisa dão conta de que, entre as transformações que ocorrem ao longo da existência Guarani, a capacidade de ouvir é de fundamental importância na formação da pessoa. O recebimento de um canto em sonho é reconhecido socialmente como uma verdadeira iniciação. Constitui o resultado de um percurso traçado e uma preparação do corpo na aquisição da leveza necessária para transpor os obstáculos apresentados. Os relatos e experiências deste trajeto de quatro anos de pesquisa com os Guarani, confirmam a importância do refinamento da audição no aperfeiçoamento do ñe’ë de cada pessoa.
Deise Montardo (2002) ao levantar aspectos da teoria musical Guarani, aponta para a centralidade da expressão ñe’ë. Entre os M’bya, ñe’ë designa “alma humana divina” ou “voz humana”, traduzida na literatura por palavra-alma. A autora reivindica o caráter musical resultante dessa confluência baseando-se no metassistema desenvolvido por Menezes Bastos (1978).
“O ñe’ë, no quadro guarani inclui os gêneros de arte verbal (que incluem a música) e instrumental. A flauta e os pássaros, por exemplo, oñe’ë, cantam” (2002:154).
Segundo a autora, ñe’ë comporta uma dimensão musical que foi negligenciada na literatura por seu logocentrismo:

“Enfatizo esta questão por ser este o diferencial desta pesquisa em relação a outras que deram ênfase na palavra ao traduzir ñe’ë. A meu ver a preferência pela palavra nesta tradução é uma herança dos primeiros dicionários feitos pelos jesuítas dentro de uma tradição logocentrada. Dar atenção aos aspectos musicais da linguagem traz à luz sua força ritual, que não está somente no sentido do texto proferido, mas também - e em grande parte - na carga semântica da música que transforma o corpo e o leva na dança.” (2002, p.154)

Na tradução de Montoya: “O ñe’ë aparece em Montoya como ‘canto de pássaros’, ‘portador de mensagem’. ‘Guyra ñe’ë rehe mbya ahauvo’, ‘pelo canto dos pássaros mandei sinais, mensagens (agouros) aos índios’”. (2002:152)
Ouvindo a Nhande Sy Odúlia, ainda sobre o ñe’ë dos pássaros: “A diferença entre ñe’ë e hyapu pode ser explicada com o seguinte exemplo: o ñe’ë é utilizado para o canto dos pássaros, enquanto o hyapu se refere ao barulho da asa, não sendo ‘a fala dele ainda’, conforme me esclareceu dona Odúlia”. (2002:153)
Considere-se que hyapu, traduzida aqui por bater de asas, situa-se na constelação semântica que se compõe aqui como trovão.
Foi durante a prática do mborahei, canto-dança, que pude intuir uma justificativa à alcunha que denomina o che ramói da tekoá Pyau José Fernandes, Gwyrá Pepó, Asa de Pássaro. A asa, que sustenta o corpo no ar, simboliza a capacidade de atravessar diferentes densidades, passar de um nível a outro.
León Cadogan, em seu primoroso estudo Aves y almas en la mitologia guaraní nos apresenta o ñe’ë, já anunciando a série que atravessa este estudo: o canto, o corpo, a criança, o pássaro, a leveza (colibri).

“También recuerdan la práctica ya citada de los Chiripá de poner flores en la bifurcación de los caminos para que Colibrí, acompañante del alma de un párvulo, pueda seguir a los padres del niño y evitar que se extravíe. Traigo nuevamente a colación estos datos porque la palabra empleada por Mbyá y Pãí para designar el ‘alma espiritual’ es ñe’ë = hablar, palabra utilizada también con referencia al ‘lenguage’ de los animales. En síntesis, podemos decir que hablar y alma espiritual son sinónimos en Guaraní, y la palabra empleada para expresar ambas ideas es un derivado de la misma raíz de la que se derivan los vocablos empleados tanto en Guayakí como en Guaraní para designar al nombre personal de un ser humano.(...) El desmembramiento del que nació la nación guayakí se produjo en una época en que para la tribu-nación tupí-guaraní había estrecha relación entre las ideas de emitir sonidos y de nombre personal - cuerpo, porque el hombre ya se daba cuenta de que pertenecia al reino animal.” (1967:142)

Cadogan identifica o nome pessoal, eté em Guayakí, com ñe’ë, aumentando as possibilidades de expandir o seu sentido para uma concepção mais musical da palavra-alma. Refere-se à concepção Guarani de que o espírito das crianças pequenas vive acompanhado do beija-flor, pássaro da leveza por excelência.
Segundo William Macena da tekoá Pyau, nosso professor de língua e cultura guarani, cada criança possui uma canção que podemos ouvir mediante exercícios de concentração. Muitas vezes um novo canto recebido na aldeia tem como contexto a chegada de um recém-nascido. Geralmente, o canto precede a chegada de um futuro rezador ou liderança. Esses cantos são levados para outras aldeias em ocasiões de encontro. O canto, geralmente, é recebido pelo che ramói, mas pode ser ainda recebido pela própria mãe. William referiu-se a um belo canto recebido na aldeia, pelo sonho de uma gestante no sétimo mês.
Ao chegar, em 2000, à área indígena de Dourados em minha primeira incursão à aldeia, fui conduzido pelo acaso, à casa do cacique Getúlio de Oliveira. Ao longo de um mês, Getúlio e Alda hospedaram-me pela primeira vez. O álbum Canto Kaiowá acabara de ser lançado e o grupo cantava quase toda noite.
No encarte desse disco, consta uma exegese dos cantos selecionados, feita por Getúlio. Nessas traduções, informa que a sinonímia do idioma para pássaros e crianças, sob a palavra gwyra, remete a sabedoria herdada dos antigos. A respeito do canto Ogwahê jevy-ma niko gwyra (Pássaro chegou de novo) diz: “O pássaro vai longe, em toda parte. Quando volta, dizemos: ‘pássaro está de volta’ (...) Do barulho das crianças os antepassados diziam: ‘Quando as crianças são barulhentas, são barulhentas como os pássaros.’ Por isso, quando ouvimos os barulhos das crianças dizemos: ‘Pássaro chegou de novo’.” (2000:5) Sobre o canto Gwyra rupa (Lugar do pássaro), informa que o lugar de aprendizagem é chamado há muito de lugar do pássaro.
Nhande Ru Tupã é o Deus que ordena. Vive neste mundo da música e das belas palavras. Divindade central no ñemongaraí, cerimonial de nomeação. Certa vez, em uma conversa com o nhande ru Luiz, da área indígena Kaiowá de Jaguapiré, no Mato Grosso do Sul, foi feita referência às fileiras de Tupã, séries de espíritos-pássaros que aguardam sua chamada para tomarem lugar neste plano. Meliá homologa ñe’ë à música: “Concepção de um ser humano e concepção do canto xamânico identificam-se.” (1989:310)
Tupã Nhande Ru, Senhor do ouvir, também é dono do trovão e do relâmpago. O trovão remete ao primitivo mistério divino. Fascinante e terrível voz do céu caindo sobre os pequenos ouvidos dos homens. Pensando assim, Tupã é o responsável pela sutura entre o espaço aéreo, onde se alça vôo com as asas de pássaro, e o destino das águas, percorridas no apyká mirim que leva às moradas dos deuses .
Os cantos associam-se ao nascimento por terem a função de despertar a sensibilidade para os fluxos que emanam de cada coisa ou ser, que os perpassa, resultante de sua dinâmica simbólica. Deus fala todas as línguas de todos os seres, se nos concentrarmos podemos aprender, nas palavras de Tupã Mirim da tekoá Pyau.
“También son reminiscencias de la época en que Guayakí y Guaraní danzaban juntos y juntos rendían homenaje a Chonó, el Trueno-Rayo, Tupã Ru Eté y Tupã Chy Eté, ‘dueños del gran mar y de todas sus ramificaciones, de la tempestad, el rayo y el trueno’ del poema cosmogónico mbyá.” (Cadogan:143) Dono dos Mares, segundo o Ayvu Rapyta, envia seus cantos para os que estão na terra. “Mientras Tupã, dios del trueno de la mitología chiripá, ‘ilumina el interior de las cosas con sus relámpagos’”. (1967:134)
Tupã que concebe e concede o ñe’ë aos homens, ilumina o interior das coisas com seus relâmpagos. Ñe’ë : alma, palavra, canto. Tudo possui ñe’ë. Pode-se conhecer ouvindo. Cada coisa possui seu ñe’ë, iluminado como um raio desde o interior, guardado em forma de vibração sonora.

“Ñe’ë e ayvu, os dois termos que, dependendo do grupo, são usados para falar da alma, da voz, da vida, da palavra, são apresentados por Cadogan como ‘linguagem humana’. Esta linguagem, no entanto, é apreendida através da audição da voz dos pássaros, da corredeira, das árvores e das pedras. Tudo que está vivo tem ñe’ë, que os humanos podem ouvir se estiverem atentos. José Morales, um dos meus informantes, afirma que tudo o que aprendeu o fez sozinho, andando no mato e ouvindo”. (Montardo, 2002: 152)

Aprender para os Guarani concerne num ato de consagração do conhecimento, de encontro às emanações que fluem de cada ñe’ë. O ouvir abre-nos à essencial reflexividade dialógica que funda a linguagem e o humano.
É comum os Guarani se referirem à idéia de aprender sozinho. Fábio Popyguá da tekoá Pyau, relata que aprendeu a tocar ravé sozinho, ouvindo e tentando até conseguir. Também afirma que, na formação do orador, o que ele aprende com o pajé é a parte mais simples, as outras partes ele vai aprender sozinho. Para isso, desde cedo o Guarani desenvolve exercícios de receptividade que o tornam um exímio auscutador. A aquisição de conhecimento sem palavras delega prestígio e consta entre os atributos de um bom che ramói.
O apuramento do ouvir é, segundo Clastres, diretamente proporcional ao valor das palavras ditas. Apreciadores do silêncio, os Guarani concebem a linguagem diferentemente de seus interlocutores brancos. Suas palavras têm asas.

Por fim, este estudo do ñe’ë busca acionar seu princípio sonoro ou musical (cf. Mattos, 2003) que remete ao princípio trágico que perpassa o mborahei, canto-dança guarani. Propõe-se que o campo semântico que traduz nome no idioma brasileiro estende-se a dimensão sonora e musical: o ñe’ë tem esse princípio. A forte influência da tradição jesuítica e catequética tende a interpretá-lo como logos, palavra, num viés lógico, que caracteriza o racionalismo ocidental do discurso do livro e da doutrina do juízo. No entanto, o que vivenciei neste exercício de desenhá-los foram as linhas cada vez mais velozes desprendendo-se em seus movimentos. Esses acontecimentos arrastavam-me a mundos inomináveis e possibilidades sempre outras. Para finalizar este estudo envia-se à estória de seu Nelson.
Conheci seu Nelson na primeira visita à reserva indígena de Dourados, em 2000. Seu grupo tem importante participação no projeto Canto Kaiowá. Junto à sua esposa, dona Maria, constitui o núcleo de seu grupo familiar de dançadores. Ela destaca-se nos encontros por sua persistência e sabedoria. É uma interlocutora preciosa que me abriu, com seu parco português, o que, por vezes, estava acontecendo enquanto se dançava.
Seu Nelson tem uma história que me contou logo que nos conhecemos. Em outra ocasião pude ouvi-la novamente. Certa vez, conversava com um patrício seu, que pleiteava sua conversão. Em certo ponto da argumentação, o protestante apelou para a perenidade da palavra cantada ao compará-la com a bíblia.
Seu Nelson, que acompanhava imperturbável o discurso do patrício, nesse momento lhe propôs uma experiência. Para tal experiência seriam utilizados dois baldes de água; dentro do primeiro colocariam seu mbaraká, no outro, seria colocada a bíblia do patrício. Depois de uma hora os instrumentos seriam retirados e seria constatada sua resistência: o mbaraká intacto e o livro inutilizado. E concluía, a palavra guarani está solta, pode ir mais longe.

sentido epistêmico

Escutar é obviamente algo que vai mais além da possibilidade auditiva de cada um. Escutar, no sentido aqui discutido, significa a disponibilidade permanente por parte do sujeito que escuta para a abertura à fala do outro, ao gesto do outro, às diferenças do outro.
(Paulo Freire, Pedagogia da Autonomia. Ensinar exige saber escutar)

Em O trabalho do antropólogo: olhar, ouvir, escrever, Roberto Cardoso de Oliveira propõe a problematização de tais atos cognitivos, ou ‘faculdades da alma’, por meio dos quais os pesquisadores articulam trabalho de campo e interpretação de resultados. O autor propõe que, no ato de construção do saber, ao invés da ingênua e perniciosa neutralidade, cabe identificar sua natureza epistêmica.
Sua reflexão sobre a especificidade do ouvir, esse saber ouvir, aprofundamento da observação primeira, é associada à compreensão do ‘modelo nativo’, com seus significados íntimos, ou ainda, à abertura do pesquisador ao ‘excedente de sentido’. Essa abertura, passagem fundamental do método hermenêutico, redimensiona o próprio universo do ouvinte, transformando-o.
Ao operar com e sobre o campo perceptivo, refere-se aqui à hermenêutica num sentido particular. Ao se falar em aprendizagem e audição entre os Guarani, o autor não perde de vista o investimento sobre suas próprias faculdades perceptivas.
Como contraponto às matrizes disciplinares do paradigma da ordem, ou metodologias explicativas, a hermenêutica, ainda que pautada sobre a palavra falada, parece ser uma tentativa de deslocar os estudos centrados nas evidências, passando a considerar também as audiências como meio de conhecimento.
Em Máquinas de viajar no tempo: o mawe e o ãng, Menezes Bastos (1978) percorre o meta-sistema de cobertura verbal do sistema maraka, música, a partir dos sistemas temporais de referência dos Kamaiurá. O ãng seria a dimensão durativa do tempo, já o cerne do mawe é mito-poiético, de caráter multidimensional. Configuram a ritualidade do toryp apoiado em três pontos: o mito, a música e a dança. A música seria a ponte que liga o mito às expressões do corpo.
Anthony Seeger (1980) refere-se ao caráter epistêmico da audição na produção de conhecimento entre os Suyá. Seus deformantes adornos corporais referem-se inclusive a este sentido. A extensão desse campo semântico denota a importância da percepção sonora na aprendizagem. Numa leitura do verbo Suyá ku-mba, equivalente a ouvir em português, inspira-nos a estabelecer igualmente algumas relações entre signos e sentidos. Entre os paralelos traçados, o autor refere-se à expressão dos Suyá está no meu ouvido, devido à compreensão de que o ouvido seja o receptor e o depositário de códigos sociais, ao invés da mente ou do cérebro. Na língua brasileira tem-se as expressões saber de cor, correspondendo a coração, saber de cabeça, correlatos de ter na memória.
Inspirou-se no esquema elaborado pelo etnólogo para desenvolver quadro seguinte.

Ohendu: Ouvir

1. guarani
2. português
3. definição

1. j’apysaka
2. ouvir
3. recepção física do som

1. j’apysaka
2. compreender
3. decodificação do
significado semântico

1. ohendu
2. saber
3. habilidade de reproduzir, repetir

1. ro-j’apysaka
2. auscutar
3. prestar atenção
ouvir com carinho

1. ohendu
2. escutar
3. escutar os conselhos, tomar em consideração

1. ndopo
2. ver-ouvir
3. imaginar

1. ohendu, ndopo
2. intuir
3. ouvir em sonho, receber como revelação


Os Guarani possuem palavras diversas para as expressões que compõem o campo semântico referente à audição. Como se vê, oñendu designa o mborahéi mbyá. Tendo por base as informações obtidas com Tonico Benitez da tekoá Jaguapiré, ohendu corresponde ao sentido de obedecer em sua raiz etimológica do latim audiens. Entre os Kaiowá, benze-se o ouvido das crianças mais levadas.
Ndopo, conforme a tradução feita por Getúlio, estaria associado ao ver ouvindo (ver com os ouvidos) referido nas palavras de Tonico. Quanto à aprendizagem, refere-se no canto Ndopo Ijeroky (Escutou a dança dele): “Quando escuto bom ensino, ao longe todos querem ver. Quem não vê e só escuta diz: ‘Escutou a dança dele.’ Quando as crianças crescem dessa maneira, elas podem ser sábias contando o que ouviram.” (2000:7)
A maneira como Getúlio situa-se em nosso idioma deixa entrever um estranhamento que se tomará aqui, como um não-condicionamento. Ao usar o idioma como segunda língua, o cacique libera nele sentidos estrangeiros. Vale lembrar que ele é um competente falante de nosso idioma. A singularidade com que descreve os sentidos envolvidos na aprendizagem em âmbito ritual é digna de nota. Seu enunciado simula as particularidades perceptivas desses momentos. A trama dos verbos ver e ouvir envia diretamente à perceptualidade ritual. Ndopo ijeroky: escutar a dança: ouvem-se os movimentos, percebe-se. Quem não vê só escuta: revela-se a relação entre os sentidos em que o ouvir prepara o ver, precede-o.
Não foi possível classificar as expressões em uma única categoria. Seu sentido é inevitavelmente polissêmico. Apysaka designa ainda o ritual mbyá. Em ro-j’apysaka, o ro funciona como prefixo verbal, indicando ação conjunta ou partilhada com outros.
“Daniel chamou-me a atenção dizendo que havia traduzido arojapysaka como ‘estou escutando’, mas que o ro colocado nesta expressão denota mais do que escutar, quer dizer que ela está escutando com carinho, está quieta sem poder falar nada, está escutando a palavra com carinho. Pa’i Kuara dá a mensagem a ela, e ela está escutando com carinho, sem olhá-lo no olho, apenas escutando”.(2002:97)
Montardo traduz o exortativo: “Ohhh! Aipo!” da canção de dona Odúlia destacando sua distinção de apysaka. Segundo seu informante, enquanto apysaka seria escutar quando se vê quem está falando, aipo seria escutar sem ver a origem do som. Aipo, que toma aqui o sentido de ouvir, é traduzido pela autora, de acordo com Cadogan, por assim ou isso. Conclui-se: ouvir o Outro é buscar ouvir com o Outro, para, assim, ouvir-se melhor.

os sentidos do ouvir

O aperfeiçoamento do ouvir foi o exercício primordial na primeira seção deste trabalho. Colocar-se a escuta do inaudível possibilita a suspensão dos condicionamentos perceptivos para retornar com as propriedades epistêmicas dos sentidos. Onde parece não haver nada a se ouvir, é aí que acontece o ouvir. No próprio processo constitui-se o material.
A repetição própria a esses cantos e aos gestos que os acompanham é um recurso fundamental na concepção desse ouvir. A variação do andamento conduz a progressão extática pela abertura a dimensões temporais outras, que redimensionam os construtos do tempo linear. A repetição de uma fórmula é um método tão eficiente para a concentração, que os sentidos se fecham a fluxos contaminadores, obtendo-se uma profunda intuição mística.
A etnomusicologia aponta encaminhamentos para a investigação da amplitude da música na relação entre a aprendizagem e a socialidade indígena.
A centralidade do canto-dança ritual na aprendizagem Guarani, aponta para uma possibilidade de compreensão de diversos fatores que norteiam o conhecimento dessas sociedades e as caracteriza diferencialmente.
De acordo com a educadora Édina Silva de Souza , Cunhã Apyká Rendy’í, o índio está dentro da mata, as árvores, os animais, o Sol, a Lua; esses elementos transpassam por mim em cadeia. É uma questão de força, como se estivesse ligada, atraindo. O verdadeiro é aquilo que nós somos. Até pra colher uma planta tem o canto, o horário, a Lua pra tirar e abençoar. A terra é a fonte de equilíbrio da família Guarani. Esse elo do homem com a terra se constitui como uma teia de aranha, se rompe um fio, já fica desorientado.
A ritualidade apreende o corpo como extensão do mundo; o amálgama desse entrelaçamento sendo o tempo. A atenção no instante conduz à concepção de ciclos mais abrangentes. Não se trata de uma educação musical nos moldes ocidentais e sim, de uma experiência de audição que reconfigura toda a sensibilidade.
O sono como momento de sensibilidade aguçada possui relação direta com a ambiência buscada na ritualidade. A preparação para a exploração das experiências oníricas é um dos objetivos das vivências rituais. Essa homologia ocorre, num primeiro momento, devido a tais vivências serem a fonte principal de inspiração dos cânticos, dos poraí/mborahei.
Nas palavras de Tupã Mirim, da tekoá Pyau: “Através do sonho que recebemos a nossa música. Temos que rezar e nos concentrar para poder receber”.
No entanto, não se busca exercitar a consciência para adentrar o inconsciente. Pela via dos cânticos, as próprias dimensões do imperceptível são trazidas para a experiência cotidiana. Os cantos resultam desse investimento do desejo sobre a percepção, buscando refiná-la a partir do imperceptível e do sonho, a partir do percebido e da vigília. Esse procedimento é viabilizado pelo rito de canto-dança. O ritual prepara a sensibilidade para as vivências nessa zona em que perceptível e imperceptível se cruzam, indistintos, visto que a própria percepção constitui-se ao longo do processo. Em momentos de passagens mais intensas, como nas iniciações dos pajés, o sonho é o plano onde podem ser realizadas importantes vivências.
Sr. Luiz, nhande ru da área indígena Jaguapiré, confidencia-me uma preciosa passagem de sua iniciação, justamente poucos momentos antes de meu retorno.
Quando jovem, certo dia caiu doente. Esteve por muitos dias convalescente em sua rede. O nhande ru responsável pela tekohá em que residia com a família fez muitas orações para descobrir sua cura. Não obtinha resultado. O nhande ru então, percebeu tratar-se de uma iniciação. O resultado dessas orações foi o seguinte sonho do Sr. Luiz.
Estava na rede, no interior da oga pysy. Chegou, então, um nhande ru que parecia diferente daqueles que conhecia. Tinha uma estatura acima da normal, de aproximadamente dois metros. Chegou-se a ele e retirou de seu ouvido um tufo de algodão de cor acinzentada. Em seguida cantou-lhe um mborahei, uma oração guarani. Era seu primeiro mborahei. O primeiro de uma série de outros que receberia a partir de então, em seu destino de nhande ru.
Os elementos da iniciação encadeiam-se, constituindo uma formação. A doença, o sonho, a limpeza/transubstanciação, o cântico e, então, o preparo ao lado do iniciador que, segundo os Guarani, realiza todo o processo em silêncio quase total. Esse racionamento de palavras relaciona-se assim ao aprimoramento auditivo do iniciando. O nhande ru tem que ter um ouvido muito bom.
Esse despertar do ouvir, no entanto, não se restringe aos cerimoniais. Faz-se também em outras experiências de contato com o imperceptível. A música deforma e suscita a reconfiguração a partir de bases perceptuais outras.

uma bruma: o ouvir

“O sol mal apareceu, mas a aldeia já despertou há muito. À beira de um caminho que liga a aldeia circular a roças familiais, sozinho, um homem adulto, mas jovem, canta baixinho. Canta repetidamente cada um dos trechos da melodia. Treina, aprende, memoriza, incorpora-a, torna-a sua. Depois a ensinará aos mais novos, que a cantarão em coro em frente às casas, provavelmente à noite, ritmando-a com movimentos de tronco, cabeça, pés. Mas, por enquanto, tenta firmá-la em sua memória, já que acabou de aprendê-la, ao ‘sair do sono’. Ao despertar, talvez ainda em estado de vigília, pôde lembrar-se do passeio de sua alma à aldeia dos antepassados, feito durante a noite. O que estes faziam, seus nomes pessoais, seus cantos e danças, são coisas a aprender. Por isso ele canta, isolado dos demais, à beira do caminho.”
(Lopes da Silva, 2001:45)


Todas as informações recebidas ao longo da pesquisa, referentes à natureza dos cantos, tratam de que eles resultam de inspirações não-conscientes (sonhar), e mesmo não-humanas (espíritos). O processo de aprendizagem guarani está intrinsecamente associado à seqüência de cantos recebidos pelo iniciando: seu estado de saúde, a ocasião, o período, o lugar, as palavras do canto, etc. são informações que referem a natureza do canto e do cantor. O problema dos cantos e de seu processo de inspiração, ocupam um lugar central neste percurso. Pode-se dizer: se a ritualidade é o dispositivo de compreensão que nos permite uma apropriação da aprendizagem Guarani, o problema da inspiração dos cantos seria o problema central deste dispositivo.
O ouvir tem importantes desdobramentos na etnografia Guarani empreendida por Montardo (2002). Na passagem denominada O sonho e a composição a autora remete a Roseman, para encaminhar a concepção Guarani, segundo a qual, os homens não são considerados donos dos cantos.
Busca-se uma interpretação que não atualize o possível, fechando-o numa explicação que remeta ao além, e sim, mantenha-o aberto como dispositivo de compreensão ou prática de produção de conhecimento.
A decisão de não explicar o pensamento indígena em termos de crença, será uma constante nesta investigação. Não se busca assim definir o que pode um corpo guarani, e sim de multiplicar os nossos corpos possíveis. Não se trata de fixar o outro, e sim de exercitar aberturas, criar singularidades. Considera-se sim, o conhecimento Guarani ombro a ombro com o nosso. De que se abstêm aqui, é de explicar o corpo guarani, que antes nos forneceu coordenadas para multiplicar nossas possíveis aprendizagens.
O recebimento dos cantos em sonho atribui-se a uma situação singular que intensifica a experiência; geralmente uma doença, evocando a proximidade da morte. Não são compostos pela pessoa. Ela os escuta. E, então, os agencia, ou seja, lhes fornece vozes.
No entanto, isso cria um sério problema. O que é bom, pois encaminha para a seguinte problematização. Como pensar o indivíduo que é e não é ao mesmo tempo? Como enviar à multiplicidade sem pulverizá-lo?
É Clastres que colocará, aqui, a questão, a partir de seus estudos das belas palavras e da ritualidade guarani, em relação à política dessas sociedades. A entrada para este problema será aqui a proposta de Roseman. Essa abordagem fenomenológica do medium temiar, simultaneamente experiência pessoal e espírito-guia concessor do canto, empreende-se via imaginal, “mundo do símbolo e do imaginário, no qual os espíritos se corporificam e os corpos se espiritualizam” .
Ainda que esteja tão distante de Roseman como dos Temiar, considera-se pertinente sua evocação a Bakhtin e ao dialogismo para o encaminhamento desse problema. Ao situar-se na intersubjetividade e, por extensão, na intertextualidade, sua filosofia da linguagem fornece elementos interessantes tanto à exegese da linguagem ritual, como à sua articulação com a composição da narrativa antropológica, visto que as considera num mesmo plano intertextual. Essa concepção da linguagem fornece boas alternativas para a consideração dessa comunicação entre o médium Temiar e o espírito portador do canto, que não seja enviá-la ao “além” ou “acima” como o faz Meliá.
Centrar-se na intersubjetividade possibilita suspender a princípio as instâncias extremas, substancializadas em sujeito e objeto, e liberar na dinâmica da interação entre sujeitos, não necessariamente humanos, o recurso do agenciamento.
Essas substâncias absolutas, coisa e pessoa, revelam-se extremos, sendo reconduzidas aqui como instâncias relacionais, categorias que só existem em interação. O autor não se reduz a um sujeito. O autor agencia multiplicidades. Não consiste na troca de pontos de vista e sim, no poder da intersubjetividade de liberar devires. Devires não operam por analogia, e sim, por zonas de intensidade.
Não há dúvida de que o sonhador é condição do canto, o qual singulariza e confecciona seu destino. Seu caráter de enigma simbólico, envia-o a viver a mensagem. Ao invés da recepção passiva, escamoteada numa concepção causal de destino, essa vivência em sua dimensão oracular fornece um contraponto complexo, de acordo com os princípios que pautam a ritualidade.
Viveiros de Castro tem coordenadas para este problema. A expressão maï maraká, música dos deuses (Viveiros de Casto, 1986), em sua polissemia de genitivo e possessivo, formula a questão central que atrai a presente problemática para esses cantos. Refiro-me ao seu caráter intermediário Paula Carvalho fala em transicional  de tal recurso ritual. Os cantos são recebidos. Geralmente em sonho, o que aciona a dimensão onírica da ritualidade.
Esse princípio constitui um problema interessante, ao propor uma esfera intermediária, encarnada no próprio som. Ao suprimir a dimensão oculta inconsciente através da materialidade da música, propõe-se que ela seja um instrumento crucial, aliada à dança, para a constituição de um princípio de causalidade, o qual se empreende na aprendizagem da ritualidade. Dessa forma, não se desnatura o transcendental e nem se deforma a imanência, para se usar os termos de Deleuze (2001:227). O autor situa: “Em Espinosa, a imanência não está na substância, mas a substância e os modos estão na imanência.” (2001:227)
Conforme Montardo (2002:31): “Ao tocar seus instrumentos, cantar e dançar, buscam força, o erguer-se (opuã em guarani), limpar o corpo (ombopoti), tornar-se leve (ivevy), estar alegre (hory ou avy’a)” (2002:31)
Ao se destacar essa dimensão imanente, para revitalizar a questão colocada por Seeger: O que eles estão fazendo?, busca-se acionar o sentido trágico, a partir do qual Viveiros de Castro reconduz a cataclismologia guarani (Nimuendaju, 1987). A fertilidade dessa palavra tem como fonte essa alegria. Uma alegria trágica.
Concebe-se, por fim, que o critério para a apropriação dos cantos é menos de ordem moral, tendência das exegeses ocidentais, que da ordem do poder, da concentração que possibilita sua captura num corpo a corpo intenso com tais figuras de outrem (humanas e não-humanas). Os poderes terapêuticos seguiriam esse mesmo critério. Entre as técnicas de concentração estão os jejuns e certos excessos, como de tabaco ou de canto-dança.

Anthony Seeger e a dimensão oracular

“Foi assim que os antigos helenos (Heród., II, 52), quando perguntaram ao oráculo de Dodona se haviam de aceitar os nomes dos deuses vindos dos bárbaros, aquele lhes respondeu: usai-os.”(Hegel, F.W. Estética. Oráculos:505)

“O símbolo é um processo de ação e de decisão; nesse sentido está ligado ao oráculo, que proporcionava imagens turbilhonantes.” (Deleuze, 1997b:59)

Enfim, deve-se frisar o caráter oracular que perpassa a educação fática enquanto hermenêutica criadora. Entre os Guarani, as vivências oraculares empreendem-se com a passagem de pássaros. Cada pássaro e hora do dia podem enviar a presságios diversos.
Essa dimensão oracular é traçada com destreza por Seeger. O autor trata, em Correndo entre o gabinete e o campo (1988), do ponto de viragem na etnomusicologia, de que sua obra é exemplar, qual seja, a passagem de uma musicologia comparada que prioriza a transcrição musical, para um redimensionamento da ritualidade no âmbito das cosmologias ameríndias.
Esta questão é colocada em Por que cantam os Suyá para suas irmãs, em termos de reciprocidade entre as determinações sociais da ritualidade e as determinações das práticas de canto-dança diárias sobre a socialidade.
Essa etnologia encontra na dimensão simbólica do corpo, ponto de convergência e veículo da socialidade, o vetor que permite um redimensionamento na concepção de tais cosmologias, bem como a abertura para a corporalidade do texto, da narrativa antropológica. A opacidade desse narrador reconduz os lastros de objetivismo positivo.
Afirma que ao trabalhar com e sobre as categorias nativas, encaminha-se uma opção epistemológica que define a especificidade da antropologia. Essa opção epistemológica marca a tradição da etnologia de Mauss, na qual o autor se insere.
A questão de Seeger voltou-se mais a abrir os campos dessa musicologia, do que dar-lhe prosseguimento. Para tanto, tem elaborado uma obra criativa, apontando possibilidades de inserção no universo dos cantos e na ritualidade, em que o próprio princípio de composição se implica na investigação resultante.
“O autor participou integralmente dos acontecimentos musicais dos Suya e foi por eles considerado um razoável cantor de akia. É, em parte, da euforia de cantar por quinze horas seguidas que este trabalho se desenvolveu.” (Seeger, 1988:41)
Digo questão, pois o autor considera que, para fruir essa prática simbólica, se deve partir de mãos vazias, ou de xícara vazia, ou de ouvidos vazios. As perguntas que intitulam seus textos marcam esse princípio de abertura do investigador, que supõe não saber de antemão o que está acontecendo: Why Suyá sing?, Porque os índios Suyá cantam para suas irmãs?, O que podemos aprender quando eles cantam? Não que o autor procure respondê-las. A afirmação do perguntar é mais importante que sua resposta.
A ritualidade é uma dimensão privilegiada para tal passagem à interação oracular com a escritura. O título do texto (1988) evidencia na preposição entre toda a série de questões levantadas.
O texto narra um diálogo de docência com Roseman, que percebe, após a anotação de gravações feitas por Seeger, certas regularidades no desenvolvimento da tonalidade dos cantos, que conduzem para o estudo do eixo tonal. Encaminha, então um questionário ao professor.
Anos depois, Seeger retorna à mesma comunidade em posse de uma antiga gravação. Ao exibi-la, o grupo fica admirado com a exemplaridade da execução, referindo-se que naquela época é que se sabia cantar. Curioso com a variação, o autor verifica, comparando com outra gravação do mesmo período, que a tonalidade estava realmente alterada. Essa constatação leva o autor a uma série de considerações, com as quais responde o questionário de Roseman anos depois.
Essa dimensão de abertura que se traduz na vivência, marca o que se chama de dimensão oracular. O registro ocupava lugar secundário na obra do autor, que sempre privilegiou as relações entre música e sociedade. A partir dos questionamentos de Roseman, serve para chamar sua atenção e responder, indiretamente, a questão intangível das microvariações tonais e seu prestígio entre os executores em sua apreciação estética, visto que valorizam o tom da gravação como entonação dos antigos.
A anotação revista, se refere a um redimensionamento da própria objetividade e, conseqüentemente, da escrita, visto que retomada numa condução diversa, aberta ao entre, que redimensiona tanto o campo, como a experiência criadora do gabinete.
A partir disso, encaminha-se que a opacidade do discurso que levanta e problematiza suas questões narrativas e enunciativas, corrobora para que não se incorra no deus ex-machina, recurso de retirar-se o corpo da linguagem, buscando esteio numa referencialidade transcendente. Talhar a matéria verbal, se aprofundar em seus recursos: esta parece ser a estratégia rumo às deformações do imaginário.
Se a linguagem é determinante à epistemologia, o caminho não é abolir a linguagem. O poder deformador do imaginário serve também para forjar outras dimensões. Ainda que as temáticas da corporalidade em sua especificidade ritual encaminhem aos limites da linguagem verbal, converge-se, finalmente, à intertextualidade.
Pode-se considerar a referida variação tonal no âmbito das micropercepções, as quais só puderam ser captadas, deixando de fugir alhures, e compor a percepção de Seeger com a transcrição. O autor vai buscar a esfera dos acontecimentos que o utranscenderam, e as apresenta circunscritas, ao mesmo tempo que, redimensionando o próprio texto. Tornado personagem, o autor desdobra-se numa instância de onde pode avistar e redimensionar os acontecimentos dentre os quais foi conduzido, registrando assim sua reconsideração da transcrição musical.
Com isso, o autor remete à escritura não como um fim, e sim, redimensionada numa articulação com a experiência, enquanto recurso hermenêutico, instância contrapontística.
O que se avista por fim, em contraste com uma atitude negativa em relação à linguagem, é a circunscrição de suas determinações, chave para a liberdade proporcionada por seus recursos. É a afirmação não-positiva da literatura e da arte narrativa, retomada como complexidade de recursos que possibilitam redimensionar o entre.
Esse sentido de uma vida (morte que torna vida em destino) é o que conduz a dimensão oracular que tomam os encontros com nossos interlocutores. Esta constitui a questão central deste trabalho. Como se destacou em Seeger, os encontros e acontecimentos estão em contínua interação com a obra, e a obra com eles, detonando acontecimentos, confluindo encontros, criando acidentes. Esse sentido nos pareceu próprio à concepção de educação fática ou de sensibilidade. Uma bruma: esta é a concepção do ouvir .